terça-feira, outubro 19, 2010

...




Escrevo-te, e descrevo-te num poema que não consigo terminar. São pequenos nadas. Sorrisos, gestos e olhares que me impedem de escrever. E divago.
Atrevo-me, então, a espreguiçar no teu corpo, deixando que me desnudes com beijos. E esqueço o mundo, quando me repetes nos teus olhos.
Divago, e vagueio por aí. Aparentemente sem rumo, calada e pensativa. Escrevo e reescrevo um poema imperfeito.

domingo, agosto 01, 2010

Há barcos...



"Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento.
Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça."


Excerto de carta de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro


quinta-feira, abril 29, 2010

Vigília






O dia entra no quarto pela janela fechada, apagando as sombras onde a alma se ocultava. Aproximam-se as horas do silêncio e do ruído, e fico só. Abro a janela e fecho alguma coisa dentro da alma.
Provavelmente, não passa tudo de uma memória. Talvez tu sejas um vago sentimento mal aflorando o meu coração, à hora breve em que o dia vem.
Lá fora, um melro assobia, ouvem-se vozes acordando, motores em marcha.
E aos poucos a vida vai ficando sensação exterioridade.

terça-feira, junho 02, 2009

Cavalo à Solta


[...]
Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo.
[...]
Ary dos Santos



quinta-feira, março 26, 2009

Latitude






O fim de tarde inspira-me; e incomoda! (Talvez, a meia-noite sossegue a madrugada.) O pensamento estaciona em desejos e angústias: transporto-te na memória. Há dias em que o tempo esconde-te de mim, outros há em que je flâne au tour de toi. Embrenho-me, então, por ruas e ruelas, ou erro por uma cartografia de emoções gasta.
Ocorre-me em revista o dia em que te encontrei por acaso. Vestias uma camisa preta, aberta e…eu observava a vontade que tens sob o pescoço, entre a turgescência dos seios e o decote, à distância de um beijo. Apetecias-me tanto!
O teu perfume tão profundo…Como se pode descrever o cheiro de alguém? Como se pode reproduzi-lo? Podemos guardá-lo numa gaveta da memória, longe do esquecimento, ou evitar que os outros também se apaguem? Tive sempre o cuidado, enquanto te beijava, de te cheirar o pescoço, o ponto onde sinto que reside a essência do teu perfume, penetrante e puro. O próprio ar não consegue modificar o teu perfume. Inspira-o, tal como eu, e embriaga-se. Apetecias-me tanto!
E aproximei-me…
O beijo cresceu, tornou-se grande e amadureceu, e com uma lenta e intencional progressão transformou-se num corpo completo, num arrepio, numa humidade libertadora. E apertei-me contra o teu corpo. Tu sorriste, porque tu sorris sempre. Ainda hoje detesto como o teu sorriso me agrada. É como se os batentes da porta do Paraíso se abrissem lentamente e iluminassem o teu rosto.
Amei-te desde o nosso primeiro aperto de mãos. Amei-te e tive medo. Não te deveria ter tocado. Aqueci-te com a minha respiração, mas não soube resistir a essa tua aura fecunda. Pensei que fosses capaz de me purificar, que me fosses tornar mais forte que os demónios do meu espírito obscuro. Porém, convocaste medos perdidos no tempo, paixões violentadas, sonhos com asas quebradas…
O tempo expirou e não se pode voltar atrás. Se nascêssemos equipados com um manual de instruções, abri-lo-íamos e leríamos: como funcionamos, como nos desligamos, como nos recarregamos… Não me arrependo, arrepender-me seria apagar uma experiência, tirar um tijolo de uma parede. Mas não consigo evitar alguma tristeza. Contigo, saí da escuridão. Sem ti todos os dias caminho na sombra. Trago-te na pele. Apeteces-me tanto!





O itálico é de Cesário Verde


quinta-feira, fevereiro 19, 2009

A cada um aquilo que é seu




O tio morreu.
O tio sentia-se mal e resolveu, naquela segunda-feira, logo pela manhã, ir ao médico. Saiu da casa de banho, foi para o quarto, para acabar de se vestir, e…
– Mas que dor tão grande no peito…
Foram as últimas palavras. Caiu redondo sobre a cama. Estava morto.
Como a vida continua, o funeral foi marcado para o dia seguinte, terça-feira à tarde. Uma velada igual a todas as veladas na sacristia de uma igreja. Quatro velas, um corpo tentando sossegar, os choros, as consolações, os cafezinhos e as conversas banais e sempre iguais nos intervalos das comoções.
No dia seguinte o enterro.
O corpo chegou à porta do cemitério e então, subitamente, uma guarda de honra militar rodeou o caixão. Uma sobrinha do morto estranhou. Guerra 14/ 18? Não, credo! o tio não andou nela, nem idade para isso. Porquê? Por que razão aquela homenagem?
– Os senhores devem estar enganados… Quem os mandou?!
Impassível, o graduado a quem a sobrinha se dirigia, continuava cadenciadamente a avançar, em silêncio. Nessa altura a força militar foi chamada, dispersou e os soldados reuniram-se em grupo, comentando o sucedido. Tinham-se enganado no morto. Tinham deixado passar aquele a quem a cerimónia era dirigida e praticaram-na na presença indiferente e fria do tio, que lá foi a enterrar enriquecido com mais aquele ritual.
A morte é assim, impassível ao mundo dos vivos; surge em qualquer momento, não olha a horas nem ao calendário. Ou talvez, quem sabe, talvez tenha olhado, porque o tio foi enterrado numa terça-feira à tarde, terça-feira de Carnaval.

quinta-feira, janeiro 22, 2009

O rio


Le Gour de Conches, G. Courbet



Um dia, das rochas áridas daquele terreno perdido entre montanhas e vales agrestes, um fio de água transparente e cantante, muito tímido e fresco, brotou.
Quantos dias correu sem ser visto?
Ninguém o soube. E, ao pequeno rio nascente, que se avolumava, se enriquecia, com águas cada vez mais puras, fortes e vivas, não lhe interessava sabê-lo.
Uma manhã, um peregrino, tão silencioso, isolado e vagabundo como o rio novo, passou por ali. Os olhos penetrantes fixaram a água corrente. Tocou-a, levou-a aos lábios, bebeu-a com sofreguidão e sentiu a vida que nela palpitava.
Que prazer para o rio saber-se desejado, necessário, saber-se recordado, mesmo quando o peregrino partia e só voltava no dia seguinte.
Porém, na Aldeia Velha onde a pureza do rio e a do olhar do peregrino não tinham lugar, alguém se espantou, ao notar a verdura que nascia naquelas rochas, da vida que brotava nos terrenos secos, da luz que irradiava, mais forte ainda, da figura já tão estranha e perturbante do peregrino que estava ali uns dias a descansar…
Seguiram-no, vigiaram-no, descobriram o rio. Foi um correr à nascente, um querer, toda a gente, fruir, profanar a doçura, a beleza dos encontros tão suaves e ardentes do rio – agora grande, cantando hinos de vitória – e do peregrino dos olhos brilhantes…
Tudo mudou, subitamente. A poesia fugiu, a intimidade retraiu-se, o rio pareceu banal, o peregrino irritante…
Então, certa noite, a hora não costumada, a amada figura se reflectiu nas águas do rio misterioso, tão fatigadas por tanto serem olhadas e tocadas por mãos estranhas.
E o peregrino despediu-se.
– Adeus, meu rio, vou-me embora, não te quero mais… Talvez te queira ainda… Mas eu sou, acima de tudo, um peregrino e o hábito de muitos anos não se pode alterar. O meu destino é partir, mudar sempre. Se ficasse, não seria verdade, teria uma personalidade dupla… Guarda, no entanto, a minha amizade…
– Não! – gritaram as águas, num sussurro que morreu nas pedras – não, não quero a tua amizade!
– Então, que queres?! – o peregrino olhava atónito.
– Amor! – gritou o rio. E as rochas floridas que tinham sido áridas e os vales que tinham sido secos repetiram, até se perder na distância, o eco angustiante daquela palavra…
– AMOR, Amor, amor, a-m-o-r…
Quantos dias o rio esteve seco?
Ninguém o soube. E ninguém compreendeu porquê. Só sabiam que, sem água, o rio não lhes interessava. E a gente da Aldeia Velha deixou de escalar as rochas e de procurar o rio novo…
Certa manhã a água voltou a correr, sozinha, perdida entre as pedras, contando às aves e às corças – únicas visitantes de agora – seu sonho de ternura, de alegria e de Amor por esse peregrino; reflectindo de memória a imagem querida.
Livre, de tudo e de todos, livre até da emoção causada pela presença daquele que estava agora para sempre ausente, o rio era mais belo, mais forte, mais alegre. Amava sem receios, sem preconceitos, sem esperanças que viessem a morrer.
Ninguém mais pensou nele. O peregrino não voltou.
Mas, enquanto nas suas águas e nas suas pedras viver a imagem do peregrino que um dia ali bebeu, amou e ele – o pequeno rio – adorou e ama, correrá entre as rochas, as montanhas e os vales, o rio que, certa manhã, muito tímido e fresco, naquele local nasceu, por milagre ou maldição.