quinta-feira, janeiro 22, 2009

O rio


Le Gour de Conches, G. Courbet



Um dia, das rochas áridas daquele terreno perdido entre montanhas e vales agrestes, um fio de água transparente e cantante, muito tímido e fresco, brotou.
Quantos dias correu sem ser visto?
Ninguém o soube. E, ao pequeno rio nascente, que se avolumava, se enriquecia, com águas cada vez mais puras, fortes e vivas, não lhe interessava sabê-lo.
Uma manhã, um peregrino, tão silencioso, isolado e vagabundo como o rio novo, passou por ali. Os olhos penetrantes fixaram a água corrente. Tocou-a, levou-a aos lábios, bebeu-a com sofreguidão e sentiu a vida que nela palpitava.
Que prazer para o rio saber-se desejado, necessário, saber-se recordado, mesmo quando o peregrino partia e só voltava no dia seguinte.
Porém, na Aldeia Velha onde a pureza do rio e a do olhar do peregrino não tinham lugar, alguém se espantou, ao notar a verdura que nascia naquelas rochas, da vida que brotava nos terrenos secos, da luz que irradiava, mais forte ainda, da figura já tão estranha e perturbante do peregrino que estava ali uns dias a descansar…
Seguiram-no, vigiaram-no, descobriram o rio. Foi um correr à nascente, um querer, toda a gente, fruir, profanar a doçura, a beleza dos encontros tão suaves e ardentes do rio – agora grande, cantando hinos de vitória – e do peregrino dos olhos brilhantes…
Tudo mudou, subitamente. A poesia fugiu, a intimidade retraiu-se, o rio pareceu banal, o peregrino irritante…
Então, certa noite, a hora não costumada, a amada figura se reflectiu nas águas do rio misterioso, tão fatigadas por tanto serem olhadas e tocadas por mãos estranhas.
E o peregrino despediu-se.
– Adeus, meu rio, vou-me embora, não te quero mais… Talvez te queira ainda… Mas eu sou, acima de tudo, um peregrino e o hábito de muitos anos não se pode alterar. O meu destino é partir, mudar sempre. Se ficasse, não seria verdade, teria uma personalidade dupla… Guarda, no entanto, a minha amizade…
– Não! – gritaram as águas, num sussurro que morreu nas pedras – não, não quero a tua amizade!
– Então, que queres?! – o peregrino olhava atónito.
– Amor! – gritou o rio. E as rochas floridas que tinham sido áridas e os vales que tinham sido secos repetiram, até se perder na distância, o eco angustiante daquela palavra…
– AMOR, Amor, amor, a-m-o-r…
Quantos dias o rio esteve seco?
Ninguém o soube. E ninguém compreendeu porquê. Só sabiam que, sem água, o rio não lhes interessava. E a gente da Aldeia Velha deixou de escalar as rochas e de procurar o rio novo…
Certa manhã a água voltou a correr, sozinha, perdida entre as pedras, contando às aves e às corças – únicas visitantes de agora – seu sonho de ternura, de alegria e de Amor por esse peregrino; reflectindo de memória a imagem querida.
Livre, de tudo e de todos, livre até da emoção causada pela presença daquele que estava agora para sempre ausente, o rio era mais belo, mais forte, mais alegre. Amava sem receios, sem preconceitos, sem esperanças que viessem a morrer.
Ninguém mais pensou nele. O peregrino não voltou.
Mas, enquanto nas suas águas e nas suas pedras viver a imagem do peregrino que um dia ali bebeu, amou e ele – o pequeno rio – adorou e ama, correrá entre as rochas, as montanhas e os vales, o rio que, certa manhã, muito tímido e fresco, naquele local nasceu, por milagre ou maldição.



6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

E sobre a dor e a alegria
de nosso corpo fremente
o vento passa,
indiferente.


(Texto muito bom! Gosto de te ler.)

Um beijinho

28/1/09 12:55 da tarde  
Blogger a said...

Há rios que devem permanecer ocultos sob pena de secarem.

Bom regresso!

29/1/09 11:16 da tarde  
Blogger Fernanda said...

E, bebendo da água desse rio,... diria que,...o AMOR continua a ser a dádiva melhor que a vida recebeu,...sempre que esse mesmo AMOR,...seja tão transparente e puro, como as águas que brotam das nascentes e correm para o mar.

Muito bonita a tua história.

beijo

31/1/09 1:18 da manhã  
Blogger kris said...

às vezes é melhor nem sabermos que existem certos rios

beijo

4/2/09 6:31 da tarde  
Blogger rach. said...

Para o anónimo de 21/01/09 das 12:55:

Olá, bela guardadora de rebanhos,
Então que te diz o vento? Certamente, que é vento e que passa.

Fica bem.

5/2/09 4:38 da tarde  
Blogger bettips said...

Voltar...com a pureza da ÁGUA.
Gostei de te ver de novo.
Saltitante como um riacho novo. Em rio afluente.
Bjinho

6/2/09 4:35 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home