quinta-feira, março 26, 2009

Latitude






O fim de tarde inspira-me; e incomoda! (Talvez, a meia-noite sossegue a madrugada.) O pensamento estaciona em desejos e angústias: transporto-te na memória. Há dias em que o tempo esconde-te de mim, outros há em que je flâne au tour de toi. Embrenho-me, então, por ruas e ruelas, ou erro por uma cartografia de emoções gasta.
Ocorre-me em revista o dia em que te encontrei por acaso. Vestias uma camisa preta, aberta e…eu observava a vontade que tens sob o pescoço, entre a turgescência dos seios e o decote, à distância de um beijo. Apetecias-me tanto!
O teu perfume tão profundo…Como se pode descrever o cheiro de alguém? Como se pode reproduzi-lo? Podemos guardá-lo numa gaveta da memória, longe do esquecimento, ou evitar que os outros também se apaguem? Tive sempre o cuidado, enquanto te beijava, de te cheirar o pescoço, o ponto onde sinto que reside a essência do teu perfume, penetrante e puro. O próprio ar não consegue modificar o teu perfume. Inspira-o, tal como eu, e embriaga-se. Apetecias-me tanto!
E aproximei-me…
O beijo cresceu, tornou-se grande e amadureceu, e com uma lenta e intencional progressão transformou-se num corpo completo, num arrepio, numa humidade libertadora. E apertei-me contra o teu corpo. Tu sorriste, porque tu sorris sempre. Ainda hoje detesto como o teu sorriso me agrada. É como se os batentes da porta do Paraíso se abrissem lentamente e iluminassem o teu rosto.
Amei-te desde o nosso primeiro aperto de mãos. Amei-te e tive medo. Não te deveria ter tocado. Aqueci-te com a minha respiração, mas não soube resistir a essa tua aura fecunda. Pensei que fosses capaz de me purificar, que me fosses tornar mais forte que os demónios do meu espírito obscuro. Porém, convocaste medos perdidos no tempo, paixões violentadas, sonhos com asas quebradas…
O tempo expirou e não se pode voltar atrás. Se nascêssemos equipados com um manual de instruções, abri-lo-íamos e leríamos: como funcionamos, como nos desligamos, como nos recarregamos… Não me arrependo, arrepender-me seria apagar uma experiência, tirar um tijolo de uma parede. Mas não consigo evitar alguma tristeza. Contigo, saí da escuridão. Sem ti todos os dias caminho na sombra. Trago-te na pele. Apeteces-me tanto!





O itálico é de Cesário Verde