sexta-feira, abril 20, 2007

O beijo (im) perfeito


O Beijo, Robert Doisneau


O beijo pode transmitir carinho, paixão, confiança, segurança… enfim, múltiplos sentimentos. A união dos lábios é a chave que abre a porta da intimidade. Mas, poderá ele ser mero gesto ou acção?...
Um dos beijos mais célebres do século XX foi imortalizado por Robert Doisneau. A foto de um casal apaixonado, um beijo espontâneo, ali perto da Mairie de Paris… Mera encenação, no entanto. Doisneau, em boa verdade, tinha contratado dois actores para irem trocando carinhos, enquanto caminhavam por entre os transeuntes, a troco de… chapas que ia batendo. Resultado: uma fotografia que correu mundo. Um beijo apaixonado, um acto livre de amor. Há quem fique desiludido. Afinal, houve premeditação, pagamento, encenação… São assim as imagens. Não é a situação “pura” que gera necessariamente a mais “pura” das imagens. Valem os momentos e as fotos que deles se fazem. Mas, enquanto se vive o momento, a imagem constrói-se com intenção. Coisas que preocupam pouco quem desencadeia ternuras.
Há beijos que ficam na memória, há outros que não lembramos mais: Françoise Barnet, actriz que, em 1950, contracenou no famoso beijo, levou o “original” de Robert Doisneau a leilão, à dois anos atrás. A base de licitação era de 20 mil euros.
Um beijo mais – que – perfeito…




quarta-feira, abril 18, 2007

As Horas



Mont Saint-Michel


É o mistério das horas que dolentes adormecem. E cada badalada soa a canto do coro latino, a sacudir-te o ser. Passam os sonhos como nuvens no céu. A insónia avulta, como novo universo. Cismas, embebida em sombras onde habitam fantasmas… flores da tua dor.
As tuas feridas saram pouco a pouco, sem que alguém adivinhe o quanto o teu caminho é um arco louco a rodar no segredo da Fortuna. O Tempo, esse há-de cobrir de pó, ou talvez não, as mais doridas…
Veste-se o dia de cores e de rituais, de cantos de aves do vento, de aves das ilhas... E recomeças... a eterna procura do infinito.

domingo, abril 15, 2007

Hoje



Hoje despi-me
Mordi a maçã
Vesti-me de serpente
E envolvi-te no meu Eu
Fundi a minha pele com a tua
Bebi os teus lábios
Senti a tua pele....
Húmida de afecto morno
Hoje despi-me
Transformei-me numa gota
Deslizando por entre a tua pele macia
Escorrendo lenta pelo teu corpo
Transformei-me num rio
Desaguei no teu mar
Formei ondas, tempestades
Naveguei em ti
Ao sabor dos ventos…
Hoje despi-me
Transformei-me num olhar
Quente, doce
Lânguido e ansioso...
Preenchendo vazios
Hoje despi-me só para ti…

quinta-feira, abril 05, 2007

From São Miguel



Ponta Delgada, 14 de Julho de 2005

Querida Sara,

Sabes o que é viver saboreando o mundo, o ar que respiramos; sentir o perfume das flores, do verde e do azul; ouvir a melodia das quedas de água, das ribeiras, a sinfonia dos pássaros, o balançar das ondas do mar, o murmúrio nocturno silencioso, envolvente e inebriador? É um mundo frágil e selvagem de avassaladora beleza que aqui encontramos em São Miguel…
Ontem, fui para o mar com uns amigos do Gonçalo, que trabalham no Instituto de Oceanografia da Universidade dos Açores, em busca dos calmos gigantes destas águas. Uma viagem inesquecível…
Hoje, por entre prados e cerrados de criptomérias e hortênsias, de campos que se atrevem até ao mar, os caminhos levam-me à costa norte e centro da ilha. A caminho da Ribeira Grande, surpreende-me um horizonte de colinas verdejantes e floridas. O mar, aqui, é mais rebelde, mas espraia-se em areais extensos numa sucessão de canudos de espuma branca. Num dia de pálido sol de Inverno, é de uma beleza agreste e tocante – dizem. Porém, no Verão, as delícias destas águas não deixam ninguém indiferente, e é tempo de aproveitar a liberdade na frescura salgada das praias abundantes. Demoro o olhar na serenidade do casario tradicional e nos jardins de pedra, e um sorriso nasce.






A Lagoa do Fogo, ao contrário de outras lagoas da ilha, rodeadas de floresta, é uma cratera vulcânica cercada de rocha coberta de vegetação rasteira. O que poderia supor ser um local desolado e inóspito, é, todavia, mágico e único, que nos envolve e pacifica o espírito. Do cume do seu alcantilado, o privilégio de avistar, na direcção do poente, as duas costas de São Miguel, e enche-me o olhar incrédulo toda a verdadeira dimensão da natureza magnífica que me rodeia (e da nossa pequenez). Quedo-me, assim, de espanto imóvel… e nem ouso respirar com medo que tudo desapareça.
Ainda deslumbrada, sigo viagem até ao Lagoa do Fogo, porque o alimento do estômago é outro. Toda a arquitectura e decoração, do restaurante, são a bonita mistura da pedra basáltica com as decorativas madeiras de criptoméria e acácia, fazendo lembrar as casas de séculos passados destas ilhas. Ainda no interior, um pequeno mimo: pode-se escutar e contemplar um ribeirinho que atravessa o bar, aproveitamento feito de uma ribeira que ladeia o restaurante. O Lagoa é um espaço gastronómico a não esquecer: a morcela com ananás, a cataplana de cherne com gambas, a fritada de peixes com molho vilão, e para adoçar a boca, no final da refeição, a espetada de frutas com molho de laranja. Verdadeiros pecados…
Estou de volta a Ponta Delgada. Pelo caminho, a paisagem continua a seduzir-me: praias de areias escuras e mornas, casas de cal e basalto, o verde dos campos, o azul do mar, o azul algodão do céu… Porém, o tempo micaelense é caprichoso. Por momentos, o céu carrega-se de negro obrigando o sol a romper em raios tímidos, mas vibrantes; segundos depois, o horizonte é um sfumatto que se dissipa, lentamente, oferecendo de novo um sol forte e caloroso, como as gentes de aqui.
Bem, parece-me que vou terminar, pois este e-mail já passou a testamento; por outro lado, tenho de me apressar: vou jantar a Relva, à Toca do Abade, que possui um curioso serviço. Ligando para lá, os donos vêm-nos buscar a Ponta Delgada e depois trazem-nos de volta, sem pagarmos um cêntimo. Algo a ter em conta quando se vai provar uns taninos.
Um beijo,
Rach